terça-feira, 16 de novembro de 2010

Mundo de papelão


Se este texto tivesse uma trilha sonora, seria esta.

Quando se nasce, a visão de mundo se restringe ao útero materno. Ao longo da vida, ela é ampliada pelos conhecimentos adquiridos e pelas experiências vivenciadas. Assim, entende-se mais sobre o ambiente ao redor. É importante frisar, contudo, que o entendimento nunca será total enquanto a pessoa estiver presa ao corpo e aos cinco sentidos, que são limitados e, portanto, falhos. Além disso, diversas estruturas preexistentes na mente – pré-conceitos – fazem com que os juízos de valor sejam tendenciosos. Há uma dificuldade natural em entender o próximo, porque cada indivíduo pensa que seu ponto de vista é universal.

Estas limitações físicas e mentais são mais fortes durante a infância. As pessoas mais próximas da criança – os pais – criam e incutem nela uma determinada mentalidade, à semelhança das suas próprias, enquanto o filho não tem condições de desenvolvê-la por si. É como se o ser humano recebesse nos seus primeiros anos de vida uma caixa de papelão, na qual poderá se refugiar e se proteger dos perigos externos, recebendo conforto e abrigo. Poderá pintá-la como quiser, sempre com a ajuda e a supervisão paterna, e é destas cores que ele enxergará o mundo. Essa proteção é necessária para que a criança sinta a segurança de que precisa no processo de definição das suas crenças, valores e conceitos. Os maiores problemas acontecem em dois momentos: quando se abandona a infância (inevitavelmente) e quando os pais superprotegem a prole (o que pode ser evitado).


Para ilustrar o primeiro caso, eis um exemplo. No ano de 2002, Rafael tinha 12 anos e era filho único. Ele era católico, frequentava a igreja e concordava com todos os ensinamentos por ela repassados. Acreditava que todo namoro é o início de um relacionamento que deve culminar em um casamento, o qual deve durar a vida inteira. Esses ideais eram reforçados pelo fato de que seus pais não eram separados. Raramente era confrontado com outras visões de mundo, visto que estudava em um colégio católico e seus colegas pensavam mais ou menos da mesma forma. O consumo de cigarro, bebidas alcoólicas e drogas ilícitas, bem como as relações antes do matrimônio, eram repreensíveis.

Hoje, no ano de 2010, Rafael tem 20 anos. Está no sexto período de Engenharia Civil de uma universidade federal. Seus pais se separaram há três anos. Sua convivência com colegas espíritas, ateus e budistas abalou suas convicções religiosas. Quase todos os seus colegas ficam nas festas e boa parte já não é mais virgem. Ao sair à noite, costumam perguntar-lhe porque não bebe. Já lhe ofereceram cocaína duas vezes. Ele negou, embora tenha experimentado maconha há um ano, sem o conhecimento dos pais. Rafael faz tratamento psicológico por causa de frequentes crises de ansiedade e depressão.


A história de Rafael, embora completamente fictícia, mostra o impacto pelo qual passa um jovem que tem a sua formação inicial confrontada com as diversas opiniões das pessoas ao seu redor. É o momento em que a caixa de papelão tem que ser rasgada para que a ex-criança se torne um adulto responsável, consciente, independente e autônomo. É um sofrimento necessário, porque tira a pessoa da zona de conforto e transporta-a para a zona de aprendizado, levando ao crescimento. A convivência com outras pessoas que não os pais e os amigos de infância – gente de todas as idades, ideologias e cidades de origem – faz com que se descubra que existem outras visões de mundo, ampliando a nossa própria.

É claro que, se não for bem administrado ou se houver interferência negativa dos pais, no sentido de superproteção, este processo pode levar a um sofrimento exagerado e levar até ao aparecimento de doenças. Também é preciso lembrar que tudo isto é gradual e lento, uma vez que, por maior que seja nossa convivência com outras pessoas, a sociedade é incrivelmente diversa e não há como conhecer tudo e todos. Porém, libertar-se da caixa de papelão e encarar o mundo é fundamental para a construção de nossas próprias crenças, valores e conceitos, que certamente não serão iguais ao dos nossos pais. Do contrário, pode acontecer o mesmo que acontece com o passarinho que não consegue quebrar a casca do ovo ao nascer: morre sufocado.

Um comentário:

  1. Belíssimo texto Felipe, abordando tudo o que realmente quer dizer crescer. Assumir as escolhas é uma lição que se aprende, mas só depois de conhecermos mais do que uma ou duas opções. A faculdade, o crescer, os círculos sociais e as experiencias nos ampliam para coisas assim.
    Sempre carregaremos valores que nossos pais nos ensinarem, pois eles na maioria dos casos, são nossas bases e não temos muito como fugir disso.
    A maior lição que podemos aprender com as experiencias, é a de que os ciclos chegam ao seu fim, e com elas mudamos muito, e nos reconhecemos maiores naquilo que já vivemos, e muito mais preparados para aquilo que virá.

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